A nostalgia do desejo
Um diálogo entre René Girard e Michel Houellebecq
«This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.»
– T. S. Eliot: «The Hollow Men»
Ler Michel Houellebecq à luz da teoria mimética de René Girard pode não ser uma tarefa simples, porque isso talvez exija do leitor a capacidade de repensar o que ele sabe – ou acha que sabe – a respeito de ambos: a capacidade de «ler nas entrelinhas». Creio que uma análise objetiva, feita do ponto de vista científico, não nos revelaria nenhuma novidade, e essa é a razão pela qual resolvi apostar no ensaio: o ensaio deixa a intuição rolar solta, sendo a forma ideal para estabelecer um diálogo entre esses dois profetas do nosso tempo.
Não, você não leu errado. Girard e Houellebecq são, cada um a seu modo, profetas, não no sentido sobrenatural de anunciar catástrofes, terremotos ou a vinda do Messias, mas no sentido natural de antecipar uma série de eventos sociais, históricos, e até espirituais com a precisão do arqueiro que acerta o alvo. O grau de pessimismo com que cada um deles encara suas «visões» pouco importa. O que importa é saber quais lições podemos aprender com esse diálogo, partindo do pressuposto de que a literatura é o espelho da realidade.
Pois bem. Para mim, é impossível não enxergar as implicações girardianas naquilo que Houellebecq chama de «nostalgia do desejo» em «A Possibilidade de uma Ilha», romance que mais parece um pesadelo de tão brutal. Nele, somos apresentados a Daniel, um comediante rico, famoso, e politicamente incorreto que alcançou todo o prestígio que alguém poderia alcançar, restando-lhe somente conquistar o amor de sua vida. E é aí que ele se vê diante de um impasse: o amor e o prazer nunca andam de mãos dadas, ou, para ser mais direto, a mulher que o ama não gosta de sexo, e a mulher que gosta de sexo não o ama. De modo que optar por uma significa abdicar da outra, sob pena de ficar sem nenhuma das duas.
Tragicamente, Daniel 1 morre mais solitário que Robinson Crusoé, mas, para a nossa surpresa, o último de seus clones, Daniel 25, começa a ter intuições profundas com base na vida pregressa de seu protótipo. Ele experimenta na carne aquilo que sua versão original também experimentou e não soube formular: quando você transgride todos os tabus, todas as regras que disciplinam – ainda que de forma inconsciente – o mecanismo do desejo mimético, você eleva o jogo para um outro patamar, onde a única alternativa é abraçar o que Girard chama de «conversão romanesca». Primeiro você fica suspenso numa espécie de vazio existencial sem entender absolutamente nada; depois, à medida que você percorre esse deserto, as coisas vão ficando cada vez mais claras, mais tangíveis, a ponto de você conseguir explicar para si mesmo o que está acontecendo. Eis a nostalgia do desejo, a percepção de que o amor é a possibilidade de aniquilação total, de que a busca do prazer pelo prazer só pode gerar frustração, dor, inveja, e de que, enfim, é preciso dar o braço a torcer caso queira sair desse círculo vicioso.
Na verdade, ninguém «sai» do círculo; o que ocorre é uma mudança de perspectiva através da qual o sujeito transforma o círculo vicioso do desejo mimético no círculo virtuoso do desejo pós-mimético. Esses insights foram publicados em 1999 no ensaio «A conversão na literatura e no cristianismo», brilhantemente traduzido por Renata Broock e revisado por Pedro Sette-Câmara. Ler o ensaio é indispensável para entender por que a conversão romanesca é a resposta mais lúcida que podemos dar à questão da nostalgia do desejo. Não adianta compreender o vazio existencial se você não pode preenchê-lo de alguma forma. E o que Girard nos oferece é justamente a oportunidade de nos reconciliarmos conosco, de escaparmos do estado de selvageria em que nos encontramos imersos por causa – e não apesar! – da rivalidade mimética.
Girard quase não fala do desejo pós-mimético, mas ele parece estar bastante interessado em saber quais são os limites da conversão romanesca, isto é, até onde ela é capaz de nos levar. Por isso, quando digo que a nostalgia do desejo é de certa forma o pontapé inicial para a conversão genuína, o que estou dizendo é que ela vem depois da imitação e antes da «pós-imitação». Ela surge exatamente no instante em que Daniel 25 enxerga nos erros de seu protótipo os erros que ameaçam destruir toda a humanidade. Daí a epígrafe deste texto: o ser humano não precisa de uma explosão nuclear para destruir a si mesmo; ele não precisa do caos, nem de quaisquer fatores externos. A causa da destruição é mais sutil, mais silenciosa, porque deriva da inconsciência, um domínio no qual a misericórdia não pode penetrar, e que só comporta uma sucessão monumental de bodes expiatórios.
Houellebecq compreende como ninguém esse festival engendrado pelo mecanismo vitimário, e, ao contrário de Nietzsche, ele não está do lado dos perseguidores. Ouso dizer que, por baixo da casca niilista, se esconde um escritor sensível o suficiente para lamentar a tragédia que a humanidade parece ter abraçado sem perceber. Prova disso é que, em «A Possibilidade de uma Ilha», a mudança de perspectiva não vem de um ser humano propriamente dito, mas de um clone. Um clone que, no entanto, carrega o DNA de um ser humano, e é justamente por isso que podemos falar em mudança de perspectiva no sentido girardiano. Daniel 25 e seus antecessores dão continuidade à linhagem de Daniel 1. No fundo, é como se Daniel 1 ainda estivesse ali falando dele mesmo em terceira pessoa, reconhecendo seus erros enquanto procura, não direi corrigi-los, mas ao menos assumi-los com uma sinceridade espantosa – a sinceridade de um recém-convertido.
Já disse e aqui repito: a nostalgia do desejo é a antessala do desejo pós-mimético, um estágio anterior – porém necessário – no processo de tomada de consciência. Primeiro você olha para trás e sente saudade da vida que poderia ter sido e que não foi; depois você cai em si e percebe que o desejo não pode ser livre se não for completamente desinteressado (ou «pós-mimético»); e, por último, vem a necessidade de se converter. Na prática, ou você se converte ou fica suspenso naquele vazio existencial de que falei no início. Tertium non datur.
Naturalmente, a conversão é o rito de passagem de um para outro estado. Ela consiste, sim, em renunciar à busca do prazer pelo prazer, mas, mais do que isso, em adotar um ponto de vista a partir do qual essa busca incessante não faz o menor sentido. Não sei até que ponto «A possibilidade de uma Ilha» pode ser lido como um romance autobiográfico, mas sei que, lá pela metade do livro, a narrativa começa a soar menos como a história das gerações posteriores de um comediante bem-sucedido após o colapso da civilização e mais como uma confissão. Se num primeiro momento ela nos mostra as perversões do protagonista – muitas vezes de forma explícita, obscena –, é tão somente para depois esfregar na nossa cara o fato de que esse ser amargo, torpe, e desprezível ao menos é capaz de se arrepender.



Ensaio de grande valor!